E QUANDO A DEMOCRACIA É INSUFICIENTE?

[Fernando Carneiro]

A luta pela democracia no Brasil, e no mundo de uma maneira geral, é indispensável. O mundo já vivenciou em demasia regimes totalitários e tirânicos. As experiências no nazismo, do fascismo, do franquismo, das ditaduras militares na América Latina e mesmo as ditaduras stalinistas que em nome do socialismo reprimiram e mataram milhões de seres humanos, são abomináveis e devem ser sempre lembradas para que nunca nos esqueçamos das perversidades perpetradas por esses ditadores.
Boa parte da minha adolescência foi dedicada a combater a ditadura militar brasileira. Desde muito jovem abracei a causa do socialismo. Em razão dessa opção fui perseguido e inclusive detido e indiciado pelos militares na famigerada Lei de Segurança Nacional, a LSN. Por isso sou um defensor apaixonado das liberdades democráticas.
Entretanto os recorrentes escândalos de corrupção e impunidade, que se multiplicam à exaustão em nosso país me levam a fazer uma ponderação sobre os limites dessa sociedade, alegadamente “democrática”. Não, não estou defendendo os regimes ditatoriais. Ao contrário penso que a ineficiência da democracia no combate à corrupção deve apontar, não para o autoritarismo, mas para um estágio superior da “democracia” que vivemos.
Seria desnecessário enumerar os indecentes escândalos de corrupção e impunidade que poluem nossa história recente. Mas um deles é emblemático: a absolvição, por parte da Câmara dos Deputados, da confessa e flagrada deputada Jaqueline Roriz. Filmada recebendo uma das “parcelas” de sua propina, a descendente e discípula do SR Roriz, foi “julgada” pelos seus pares deputados federais. O argumento de que roubou antes de ser eleita foi a desculpa utilizada pelos deputados para absolvê-la. Na verdade seus pares, em sua maioria, ficaram preocupados mesmo foi com sua própria pele, pois boa parte deles fez e faz o mesmo que Jaqueline. Detalhe: a votação, contra a posição do PSOL e de alguns outros deputados, foi secreta. Ninguém queria mostrar a cara absolvendo essa ladra e corrupta.
Esse episódio já está sendo esquecido, como o foram os episódios dos “sangue-sugas”, dos “mensaleiros” e de tantos outros. José Dirceu, Fernando Collor, Jáder Barbalho, Paulo Maluf continuam soltos e impunes, e pior: parlamentares (ou tentando ser, no caso de Jáder).
Qual a mensagem que o Congresso, em tese a representação dos interesses do povo, manda ao conjunto da sociedade? Na verdade estão dizendo: “roubem, roubem e roubem. Se forem deputados, vereadores, ministros e governadores vocês serão absolvidos”.
Houvesse de fato independência entre os 3 poderes, talvez a Justiça pudesse fazer justiça e prender esses cidadãos. Mas o braço do Executivo é tão poderoso que influencia diretamente as decisões do legislativo e do judiciário.
O povo já entrou numa fase de amortecimento. “É sempre assim, político nunca vai preso” afirmam muitos. A indignação vai cedendo lugar a uma perigosa acomodação. Qual a alternativa? Que podemos fazer para impedir a impunidade? Muitas vezes nos sentimos impotentes diante do gigantismo do monstro da corrupção. Aliás, estudos recentes indicam que a corrupção drena nada menos que 2,5% do PIB nacional. São quase 70 bilhões de reais ao ano. Seis vezes mais que o “bolsa família”, o maior programa de assistência social dos governos Lula e Dilma.
Penso que a saída é um aprofundamento radical da democracia vigente. Primeiro precisamos acabar com o verdadeiro leilão em que tem se transformaram os pleitos eleitorais no Brasil. As eleições colocam numa vitrine diversos candidatos a vereador, deputado, senadores, prefeitos e governadores. Os empresários escolhem um ou mais e passam a “financiar” a campanha dos candidatos. Depois de eleitos eles viram propriedade destes empresários e assim fazendo usam o povo apenas nos discursos em dias de festa. O financiamento de campanha deve ser exclusivamente público. Além disso, é fundamental que possamos impor à “democracia representativa” que vivemos hoje, elementos da “democracia direta” das massas. E isso passa por exigir a revogabilidade dos mandatos, o fim do voto secreto, a redução das benesses concedidas a parlamentares, a constituição de efetivos organismos de controle popular sobre a institucionalidade, a transparência da prestação de contas, entre outras medidas. E precisamos começar agora essa discussão, caso contrário o quadro de descrédito e amortecimento vai se agravar.
A chamada “democracia burguesa”, salvo em raríssimas exceções, é incapaz de punir seus representantes. Nunca cortam sua própria carne. A democracia não é um valor universal, absoluto. Na sociedade capitalista nunca haverá democracia de verdade. O velho Lênin já dizia que numa sociedade assentada na exploração de classes “liberdade” e “democracia” são palavras ocas.
Qual então nossa estratégia? Penso que em primeiro lugar devemos esgarçar ao máximo os limites da democracia burguesa. Exigindo sempre mais do que ela nos dá. Mas o essencial é lutar pelo fim da sociedade de classes. Só no socialismo poderemos experimentar uma verdadeira representação direta do povo.
É verdade que os exemplos de socialismo que a história nos brindou, salvo raros momentos, não exerceram a democracia por muito tempo. Em muitos dos casos há condicionantes históricos que explicam a questão, mas isso requer um outro artigo.
O que resta evidente é que os muitos limites da democracia do capital e a corrupção não são episódicos, mas inerentes mesmo ao capitalismo. E não dá mais pra conviver com tanta corrupção e miséria.

Fernando Carneiro é historiador, dirigente do PSOL/PA e membro da equipe do Ponto de Pauta

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