Rogério Barbosa [Conjur]
A Organização dos Estados Americanos (OEA), por meio de sua Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), aceitou e deve julgar diversas reclamações contra o Brasil por violação aos direitos humanos. Entres os casos que estão na CIDH estão desde reclamações por não pagamento de precatórios até casos de desaparecimento, como o de um radialista que sumiu após fazer denúncias contra políticos; e de tortura, como o de um dono de bar, que após ter sido preso acusado de desacato, teria sido torturado por policiais.
O Brasil ratificou a Convenção Americana em 25 de setembro de 1992, comprometendo-se a proteger os direitos humanos por ela protegidos. A partir daí, a CIDH passou a ter competência para julgar descumprimentos destes direitos, que tenham ocorrido a partir da data em que o Brasil assinou a convenção, e cujos recursos internos no país já tenham se esgotado.
Entre outros motivos, a morosidade judiciária (como a de um processo de restituição internacional de crianças, que se arrasta por mais de oito anos) e a falta de ferramentas jurídicas que garantam o cumprimento das decisões judiciais de caráter monetário (precatórios) impostas ao Estado têm levado o Brasil à corte internacional.
Repressão à imprensa
Um dos casos foi investigado pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e submetido à CIDH. É o caso do jornalista e locutor de rádio Ivan Rocha (foto), que desapareceu em abril de 1991 supostamente em virtude das críticas e denúncias de corrupção que fazia em seu programa contra políticos do sul da Bahia. De acordo com a investigação da SIP, houve “irregularidades, pressões e tentativas de conduzir o processo” instaurado pelas autoridades brasileiras para a apuração do caso.
De acordo com a denúncia apresentada à CIDH, Ivan Rocha fazia críticas no programa A Voz de Ivan Rocha contra autoridades que participariam de grupos de extermínio. A causa do desaparecimento do radialista teria sido o programa veiculado no dia anterior, no qual ele anunciou que entregaria às autoridades um relatório com nomes de policiais e políticos envolvidos com crimes. Um dia depois, Ivan desapareceu.
Depois das investigações, dois policiais e um jornalista, que trabalhava em uma rádio de propriedade de um político rival ao grupo para o qual trabalhava Ivan Rocha, foram denunciados pelo sequestro Ivan. No entanto, de acordo com a acusação, a mudança de versão de testemunhas oculares diante da Justiça, inclusive dizendo que inicialmente teriam sido acuadas a depor contra os acusados, fez com que o Ministério Público retirasse a denúncia, o que não impediu a Justiça de condenar o jornalista e um dos policiais. Um segundo policial acusado foi inocentado.
No entanto, ao analisar o recurso, o Tribunal de Justiça da Bahia considerou que as contradições no depoimento da testemunha principal do caso, combinadas com a falta de outros indícios, resultaram na insuficiência de provas para determinar a materialidade do delito e a eventual autoria. Portanto, revogou as condenações. O caso está prescrito desde abril do ano passado.
Para a SIP, o processo penal padeceu de importantes irregularidades. Em maio de 1991, por exemplo, foram encontradas algumas ossadas e roupas que poderiam ter pertencido ao jornalista desaparecido, mas que não foram matéria de uma perícia forense. A entidade ainda chama a atenção para o suposto sequestro da única testemunha ocular do crime. Segundo a SIP, a testemunha foi sequestrada em agosto de 1991, depois de ter declarado a um policial ter visto o jornalista e um dos policiais acusados e outras duas pessoas que não conhecia saírem de um veículo e depois introduzir Ivan Rocha nele.
Finalmente, segundo a SIP, os recursos judiciais sobre o desaparecimento foram esgotados em 1994 e continua existindo impunidade no caso, já que no momento da apresentação da petição haviam transcorrido mais de nove anos desde que terminou o referido processo penal, sem que tivesse sido investigado e eficazmente punidos os responsáveis pelo crime. Afirma a SIP que ainda não se sabe o paradeiro do radialista. Com base nestas considerações, a SIP aduz que o Estado é responsável por violações de diversos artigos da Convenção Americana.
Na CIDH, além de defender a decisão do TJ, que “inocentou com base em testemunhos contraditórios”, o Brasil defende que Comissão Interamericana não é competente para examinar a petição com base na Convenção Americana, já que os fatos alegados ocorreram em 22 de abril de 1991, mais de um ano antes da ratificação da Convenção Americana. Além disso, argúi que como a denúncia foi feita nove anos depois do trânsito em julgado no Brasil, não poderia ser aceita pelo CIDH por prescrição do prazo para reclamar.
Mas para a comissão, o radialista Ivan Rocha é uma pessoa física a respeito da qual o Estado brasileiro se comprometeu a garantir os direitos consagrados na Convenção Americana, de maneira que a CIDH tem competência ratione personae para examinar a petição. A competência ratione materiae se dá “porque a petição se refere a supostas violações de direitos humanos protegidos pela Convenção Americana e pela Declaração Americana”.
A respeito da prescrição (competência ratione temporis), a CIDH aponta que o desaparecimento do radialista ocorreu em abril de 1991, antes que o Brasil ratificasse a Convenção Americana, em 25 de setembro de 1992. Não obstante, a CIDH toma nota de que, “para os fatos ocorridos a partir de 25 de setembro de 1992, ou aqueles que possa considerar oportunamente como uma situação de violação continuada de direitos que continuasse existindo depois daquela data, a Comissão Interamericana também tem competência ratione temporis para examinar esta petição sob a Convenção Americana”.
Em sua decisão, a CIDH ressaltou que a jurisprudência constante do Sistema Interamericano em casos de desaparecimento forçado de pessoas indica que este fenômeno constitui um fato ilícito que gera uma violação múltipla e continuada de vários direitos protegidos pela Convenção e deixa a vítima completamente indefesa, acarretando outros delitos conexos”. Nesse sentido, a Comissão Interamericana observa que se forem provadas as alegações da SIP em relação ao suposto desaparecimento forçado do radialista, assim como as alegações referentes à denegação de justiça e a falta de esclarecimento dos fatos, poderiam caracterizar violações de diversos da Convenção Americana.
Considerou, por fim que, “em virtude do princípio iura novit curia, a CIDH declara esta petição admissível também no que se refere a possíveis violações de diversos artigos da Convenção Americana.
Tortura
A defesa de Hildebrando Silva alega que, desde o momento de sua detenção e durante sua prisão numa delegacia, esteve sujeito a violência nas mãos dos agentes da polícia estadual, o que configura tortura e violação da integridade pessoal.
A reclamação junto ao CIDH foi feita pela Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), que alegam que, apesar das queixas apresentadas pelo dono do bar às autoridades competentes, o Estado não puniu as violações alegadas. As entidades concluem que os fatos alegados constituem violação a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.
O primeiro inquérito policial aberto para apurar o caso foi arquivado pela polícia, que entendeu que houve falta de provas de abuso de autoridade, e que Hildebrando Silva havia auto-infligido as lesões ao resistir à prisão.
Em junho de 2000, a SDDH apresentou novas provas às autoridades em nome do dono do bar — declarações de três novas testemunhas — e obteve a reabertura da investigação mediante decisão judicial. Segundo a entidade, nessa mesma data, o MP apresentou uma denúncia acusando seis policiais de tortura contra Hildebrando Silva. A Justiça aceitou formalmente a denúncia, mas, após uma série de agravos de instrumento interpostos pelos acusados, a denúncia foi rejeitada por uma decisão judicial proferida em agosto de 2003. A entidade que defende Hildebrando Silva observa que, já que o MP não recorreu dessa decisão, o dono do bar apresentou recurso em sentido estrito em novembro de 2003.
Contudo, o recurso foi rejeitado em 2006 com base em que, “diante da ausência de recurso impetrado pelo MP — a suposta vítima e seus representantes, atuando como assistentes de acusação, não tinham capacidade legal para apresentar tal recurso autonomamente segundo o direito processual brasileiro”. Portanto, indica a defesa de Hildebrando Silva que a Justiça afirma que a petição não preencheu os requisitos de admissibilidade, já que os recursos internos foram buscados e esgotados, e a petição foi protocolada dentro dos seis meses após a decisão final.
O Estado alega que a petição é inadmissível porque os recursos internos não foram esgotados, conforme estipula a Convenção Americana, já que a Hildebrando Silva não impetrou uma ação civil de reparação de danos. Além disso, o Brasil argumenta que Hildebrando Silva não apresentou fatos que caracterizem uma violação da Convenção Americana, o que faz da petição inadmissível. Concluiu o governo brasileiro que “não há evidências críveis de que a suposta vítima tenha sofrido tortura ou violação de sua integridade pessoal nas mãos dos policiais”.
Para a CIDH, “a petição identifica Hildebrando Silva como um indivíduo em relação ao qual o Estado concordou em respeitar e assegurar os direitos consagrados na Convenção Americana”. Quanto ao Estado, o Brasil ratificou a Convenção Americana em setembro de 1992 e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura em 1989, “assim, a Comissão Interamericana tem competência ratione personae para examinar o caso. Segundo o artigo 23 de seu Regulamento, a Comissão Interamericana tem competência ratione materiae para examinar a presente petição, já que se refere a supostas violações de direitos humanos reconhecidos na Convenção Americana e na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura”.
2 respostas para “Neno Freitas | OEA aceita denúncias contra Justiça brasileira”
Neno,
Acompanho tua indignação diante da falta de justiça que ocorreu e perdura até hoje, diante da tortura que sofrestes naquele episódio triste e de uso do aparelhamento coercitivo estatal para reprimir violentamente um cidadão. Cabe ressaltar o papel inócuo da SDDH, que mesmo quando denunciastes na Record, em nada se pronunciou. Acho que o correto está feito! Procurar justiça nas cortes internacionais, já que aqui justiça é só pra alguns grupos elitizados.
Grande abraço
Infelizmente até hoje o Neno ainda apresenta sequelas desta terrível agressão. Mas lembro bem desse caso e sei que ele denunciou os torturadores em todos os setores da mídia escrita, falada e televisionada. Nosso MP não teve coragem de punir os acusados e agora o estado responderá à OEA por esta covardia. Bem feito.