Bruno da Ponte Souza (*)
A forma de se adquirir a propriedade rural no século XIX, entre outros fatores, estava ligado às vontades políticas de desenvolvimento do Estado Imperial. A mercantilização da terra de acordo com o artigo 1º da Lei de Terras de 1850 e a chamada aos posseiros à regularização de suas posses foi, nas suas devidas proporções e de acordo com a região do Brasil, a forma de legitimação encontrada pelo Império para se ter o conhecimento das propriedades. Entretanto, as formas de acesso a terra no Brasil do século XIX se dava também, pelo apossamento de terrenos devolutos e particulares, ao ponto de encontrarmos nos processos cíveis de demarcação ou de ação de posse a alegação de estada no local há vários anos.
Os custos com o processo de regularização da terra após a Lei 601 – medição e demarcação – eram altos e nem todos tinham condições de banca-los. Dessa forma, temos que muitas propriedades ficaram na ilegalidade perante a Lei. O conhecimento de determinadas glebas de terras chegava a ser público quando alguém que pudesse pagar os custos de um processo de demarcação o solicitasse. Assim, eram conhecidos os limites das terras do autor do processo e dos confinantes citados nos autos.
Dessa forma, podemos inferir que dentro de um conflito para se saber os limites das propriedades, poderia existir famílias ligadas a terra por dez ou vinte anos e que usaram a frase “Acho-me estabelecido a desesseis anos em terras que forão devolutas no Igarapé Camorituba, pertencente a esta freguesia do Mojú…”, expressão que em um primeiro momento pode ser analisada como uma expressão inconsciente, em relação às consequências dos rumos de um litígio judicial, mas que no decorrer do processo poderia fazer a diferença ao final da sentença, visto que ao fazer referência a terras devolutas, ao mesmo tempo em que justificava a ausência de documentação legal sobre o seu controle, demonstrava que sua posse se dera de forma pacífica, pois a terra estava desocupada e havia sido retomada como possessões do governo imperial – o significado de terras devolutas se expõe aqui como “terras que foram devolvidas”.
É claro que o direcionamento intencional das expressões no curso do processo judicial era competência dos procuradores (advogados). Portanto, a consciência ou a inconsciência da matéria jurídica, isto é, as regras do jogo, merecem atenção especial na análise das fontes, para termos a certeza do discurso da legitimidade das partes – autor e réu.
Essa gama de expressões e discursos presente na documentação faz parte da matéria prima para entender o discurso legitimador que conferia às partes do processo o domínio da propriedade. A partir daqui vamos relatar alguns litígios que darão conta do discurso legitimador para a manutenção da propriedade rural no Pará entre 1860 e 1870. Vamos aos fatos.
Antônio Ferreira Ferrão desejando demarcar suas terras situadas no Igarapé Camorituba, no ano de 1863, no distrito de Mojú, comarca de Igarapé-Miri, entra com uma petição de demarcação de terras. Descendo pelo dito Igarapé, à mão direita, tinha o terreno de frente, mil e quinhentas braças e de fundos, mil e duzentas braças, com casas de telhas e as mil e duzentas braças de fundos cultivadas. O sítio de Antônio Ferreira Ferrão confinava pela parte de cima com as terras de José Gomes de Araújo e pela parte de baixo com as terras do finado Tenente Coronel João Antônio Luiz Coelho. Estas informações estão no traslado de escritura de compra desse terreno anexado ao processo de Demarcação. Os confinantes são chamados a conciliação, mas não aparecem no dia e hora marcada pelo Juiz Romualdo de Souza Paes de Andrade, caracterizando a confrontação dos limites das terras pela analise dos “justos títulos” em audiência a ser marcada pelo dito Juiz.
É interessante perceber que dentro dos autos de demarcação há uma declaração do antigo dono dessas terras que se autodenomina posseiro, dizendo está no local a mais de dezesseis anos “em terras que foram devolutas”. A declaração referida data de 27 de outubro de 1854, portanto Bazilio Magno Gomes do Amaral, o posseiro, tomou o local por posse no ano de 1838. Logo, antes da Lei de Terras que assegura em seu artigo 5º que as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária e com cultura efetiva seriam legitimadas, guardados os seus devidos parágrafos.
Acontece que os confinantes também eram posseiros e adquiriram as terras na mesma época que Bazilio do Amaral e como foi dito acima, não compareceram à conciliação. Fato que evidencia a insatisfação com a situação, do confinante José Gomes de Araújo e os representantes do finado Tenente Coronel João Antônio Luiz Coelho. A insatisfação dos confinantes era porque Antonio Ferreira Ferrão, o novo dono das terras por título de compra, estava passando dos limites acusados no seu titulo, invadindo terras alheias.
Contada essa história, o seu desfecho se dá com a marcação do dia e hora para se proceder a demarcação das terras de Antônio Ferreira Ferrão. O juiz Romualdo de Souza Paes de Andrade manda publicar no diário oficial – jornal anexado ao processo – o dia 4 de dezembro de 1863 para comparecer ao local marcado – Igarapé Camorituba – os interessados na dita demarcação.
O que vale chamar a atenção aqui é o fato de um posseiro, assegurando terras devolutas por dezesseis anos, consegue o direito de aliená-la. É evidente que ele está amparado, segundo a interpretação da Lei de Terras de 1850, no seu artigo 5º. Vemos aqui que a Lei de Terras de 1850 teve que levar em consideração os diversos casos de acesso à terra antes de sua promulgação, ou seja, a lei mostrou seu aspecto conciliatório ao chamar posseiros para a regularização da propriedade. Mas nota-se aqui um direito adquirido pelo tempo de estada no local (posse) e claro o reconhecimento das pessoas competentes para lavrar as escrituras – tabelião e juízes – da pessoa que ali morava, no caso Bazilio Magno Gomes do Amaral. Além da posse efetiva do espaço, Bazilio do Amaral se encaixa dentro do conceito de domínio da propriedade, pois conseguiu aliená-la, a um terceiro – Antonio Ferrão – delimitando o tamanho do espaço no qual exercia a posse.
A grande pergunta é por que a medição das terras de Antonio Ferreira Ferrão aconteceu se não houve conciliação e os réus confinantes chegaram ao local no mesmo período que o seu primeiro ocupante, o posseiro Bazilio? Seria prudente a análise, por parte do Juiz, dos títulos e declarações de todos os confinantes e constatar a estada no local denominado Camorituba, pela ocupação mais ou menos no mesmo período, em 1838, segundo a declaração de Bazilio Magno do Amaral. Entretanto, a sentença favorável a Antonio Ferreira Ferrão para demarcar sua terra é um indício de que o discurso legitimador e a apresentação de documentos de compra, de certa forma autorizada por pessoas legitimadas das instituições jurídicas – os tabeliães – foram mais forte que os de seus confrontantes que alegaram estar no local à mesma época que o posseiro Bazilio.
Evidente que somente a apresentação de documentos não determinou a sentença favorável a Antonio Ferreira Ferrão para demarcar suas terras ao ponto de satisfazer sua idéia dos limites da sua propriedade. O que chama atenção nesse processo é o direcionamento da declaração do posseiro Bazilio do Amaral a Antônio Ferrão, mostrando o grau de legitimidade e nas entrelinhas fica a interpretação de que declarando o tempo de estada no local, da posse, Antonio Ferreira Ferrão ia conseguir a demarcação sem maiores contestações. Diz o posseiro,
Declaro eu abaixo assinado na qualidade de posseiro, que faço a declaração de minhas terras da forma seguinte: Acho-me estabelecido a desesseis anos em terras que forão devolutas no Igarapé Camorituba, pertencente a esta Freguesia do Mojú, descendo pelo dito Igarapé abaixo do lado direito; sempre em efetiva cultura, com posse mansa e pacífica e morada habitual, achão-se as ditas terras lavradas por mim, na frente, mil e quinhentas braças e nos fundos mil e duzentas, pouco mais ou menos, confina da parte de cima com o sitio de José Gomes de Araújo e da parte de baixo com as terras do Tenente Coronel João Antonio Luiz Coelho.
Veja nessa declaração que o posseiro cerca por todos os lados os requisitos da legalização de uma propriedade adquirida por posse. Menciona o tempo de estada no local, diz que eram terras devolutas adquiridas mansa e pacificamente, com cultura efetiva, usando o termo “sempre em efetiva cultura” o que deixa claro a intenção de legitimar suas terras e, por ultimo, a menção dos nomes de seus confinantes.
Não satisfeito, Bazilio Gomes do Amaral, após essa declaração, faz outra declaração, na mesma página, direcionada a Antônio Ferreira Ferrão, dizendo: “Pertence este registro ao Senhor Antônio Ferreira Ferrão por ter comprado o sítio pertencente a essas terras.” Essa simples frase parece despretensiosa a uma análise menos acurada. Todavia, a atenção necessária mostra uma finalidade. O posseiro Bazilio quer mostrar às autoridades, através do processo de Demarcação, que sua posse é legitima, portanto é incontestável sua legalidade. Visto por esse prisma, Antonio Ferreira Ferrão tem um respaldo para a compra das terras e consequentemente, ao pedir a demarcação, teria grandes possibilidades de satisfazer os limites mesmo com contestações de vizinhos.
Por outro lado, vemos que o processo jurídico de demarcação, solicitado por qualquer pessoa, era uma forma de legitimar a propriedade perante a lei e, ao mesmo tempo, dava conhecimento ao governo provincial da área em questão. Essa visão seria o óbvio e fato de vitrine ao analisar a documentação.
Outra idéia está envolvendo os interesses de Antonio Ferreira Ferrão sobre a propriedade e um fato comum entre posseiros que seria o sentimento de igualdade social e de pertencimento de uma mesma situação (aquisição de terra por posse). No traslado de escritura de compra que fez Bazilio Magno Gomes do Amaral, o posseiro, a Antonio Ferreira Ferrão, diz o posseiro que os réus confinantes obtiveram suas terras por posse. Logo as relações entre o posseiro Bazilio do Amaral e José Gomes de Araújo eram harmoniosas até a venda do terreno a Antonio Ferreira Ferrão. Com isso, a propriedade mudando de proprietário, muda-se também as relações pessoais entre os posseiros que ali estavam e o recém chegado comprador das terras.
A rede de relações pessoais poderia ser intensa a favor dos que nela se inseriam, no momento do andamento do processo de medição de terras, por exemplo. Estou falando mais explicitamente das relações entre as partes do processo – autor e réu – com Juízes, Escrivães e Tabeliães, pessoas formadoras do discurso legitimador sobre a propriedade rural. Nos processos cíveis envolvendo a propriedade rural é comum encontrarmos uma rede montada de relações que vai desde os Juízes até o agrimensor que faz a medição das propriedades. A importância de atentar para essa questão nos ajuda na reconstrução de sociabilidades. Mas, para entender o discurso da legitimidade escrito nos processos judiciais envolvendo terras no Pará do século XIX é necessário entrar na dinâmica das interpretações de cada discurso das pessoas citadas no processo judicial. Corroborando com Márcia Motta em relação a essa idéia de aprofundar a análise das interpretações, afirma a autora.
Não nos basta identificar as relações entre as partes e suas respectivas testemunhas. A vinculação de parentesco ou de trabalho, o fato ou não de serem vizinhos são apenas indicativos, mas não explicam a própria dinâmica dos conflitos nas áreas em litígio. Se o papel das testemunhas tornou-se fundamental para sustentar as interpretações presentes em cada conflito, é preciso identificar, quando possível, as varias interpretações em confronto.
Nesse sentido, temos um processo cível de medição das terras de Manoel Eugênio da Conceição em 1861 no Pará, município de Igarapé-Miri. Esse processo contém um fato curioso. As partes não apresentam seus advogados, fazendo diretamente suas defesas junto ao juízo competente. É um fato que parece bobo, mas mostra que o autor Manoel Eugênio da Conceição possui o grau de relações pessoais com o juízo comissário de Igarapé-Miri. Manoel Eugênio da Conceição entra com um pedido de “medição da legitimação de posse” em 11 de março de 1861, alegando ser “senhor e possuidor de uma posse mansa e pacífica com plantações de cacoaes (cacau) adquiridos por título de compra no rio denominado Santo Antônio…” Seus vizinhos confinantes era Felippe Benicio de Oliveira Pantoja e João Manoel da Fonseca. No dia 12 de março de 1861, o Juiz comissário Antônio Mariano Marinho Junior nomeia, para fazer a vistoria sobre as plantações e morada habitual nas terras de Manoel Eugênio, João Ribeiro Machado e José Antônio Gonçalves. Esses dois fazem a vistoria no dia 13 de março e confirmam tudo a favor de Manoel Eugênio: “casas de fabrico coberta de palhas” e cultura efetiva de cacoaes. E baseando-se o Juiz Antônio Mariano no artigo 37 do regulamento 1318 de 30 de janeiro de 1854, marcou o dia 4 de abril de 1861 para o começo da medição das terras de Manoel Eugênio.
Acontece que o processo de medição e cheio de irregularidades, mas mesmo assim a medição tem inicio no dia 5 de abril. As irregularidades estão justamente no grau de relações entre o Juiz Antonio Mariano, João Ribeiro Machado, homem de confiança do juiz para fazer a vistoria nas terras e o autor do processo Manoel Eugênio. A medição das terras de Manoel Eugênio foi procedente com o aval do Juiz Antônio Mariano. Ao termino da medição no dia 18 de abril de 1861 começam a aparecer as irregularidades quando o processo é remetido a capital Belém para analise da presidência da província através de seu procurador fiscal.
As irregularidades que são apontadas pelo procurador fiscal estão contidas nas declarações feitas por João Ribeiro Machado, homem que fez a vistoria nas terras de Manoel Eugênio por nomeação do Juiz comissário de Igarapé-Miri. São duas as declarações. A primeira trata da antiga dona das terras chamada Guiomar Martinha de Freitas, que fez venda ao próprio João Ribeiro Machado, datando de 1854. Ao final dessa declaração há a escrita de João Ribeiro Machado dizendo que a declaração “pertence ao senhor Manoel Eugênio da Conceição”. A segunda a declaração escancarada de João Ribeiro Machado afirmando que as terras foram compradas por ele da dita Guiomar Martinha de Freitas e que agora estava fazendo venda a Manoel Eugênio da Conceição pela quantia de cinquenta mil réis.
Em 20 de abril de 1861 esse processo é remetido à capital da província do Pará para ser analisado pela presidência da província. Através do procurador fiscal da província são relatadas as irregularidades do processo. A primeira é que João Ribeiro Machado não era competente para arbitrar sobre as terras, porque ele fez venda delas para o autor do processo de medição e demarcação, Manoel Eugenio da Conceição. João Ribeiro Machado passou por cima de terras de um dos confinantes (Felippe Pantoja), afirmando que eram devolutas e por isso poderia demarcar as áreas que “compreendiam umas capoeiras” a favor de Manoel Eugênio. Se for área de capoeira, então ali havia sido feito plantações, portanto alguém havia cultivado aquelas terras por determinado tempo. Ou seja, a área tinha um proprietário ou um posseiro. E João Ribeiro Machado com o intuito de fazer “boa e valiosa venda que fez, não era competente para arbitrar a sua estimativa” (fala do procurador fiscal do Pará).
Veja que o Juiz Comissário, Antônio Mariano foi omisso ao fato de nomear João Ribeiro Machado para a vistoria nas áreas que seriam demarcadas a favor de Manoel Eugênio. Acreditamos, na verdade, que o Juiz foi conivente com a nomeação de João Ribeiro, atropelando as determinações do regulamento 1318 de 1854, mais especificamente no seu artigo 34, parágrafo 2º que diz: os juízes comissários são competentes para nomear seus escrivães e agrimensores que com ele devem proceder as medições e demarcações. Nesse processo o agrimensor nomeado foi Pedro Ripoll. Isso mostra que os procedimentos de vistoria de cultura efetiva e morada habitual, requisitos para dar inicio a demarcação, foram delegados a João Ribeiro, pessoa não competente para tal procedimento e com interesse total em desvirtuar as informações, no intuito de vender as terras.
Dessa forma, volto a insistir que a rede de relações pessoais e de favores poderia estar acima da regularidade, misturando-se à fé pública que carregavam os funcionários públicos. Na maioria dos processos de medição e demarcação, os próprios agrimensores é que fazem a vistoria da área a ser demarcada. No caso do Juiz Comissário, Antônio Mariano, não há coincidência nenhuma em nomear alguém com interesse em vender as terras em questão para o próprio autor do processo de demarcação, mas sim algum tipo de relação de interesse com João Ribeiro Machado. Felippe Pantoja, o confinante prejudicado fez o pedido ao Juiz Comissário, Antônio Mariano, para mudar os rumos dos marcos que estavam passando pelas capoeiras sob sua posse há mais de 10 anos. O pedido foi ignorado porque João Ribeiro Machado e José Antônio Gonçalves,
…os dois examinadores nomeados pelo Juiz para verificarem se Pantoja tinha plantações nessas capoeiras; e declarando eles que nenhuma fora encontrada; mandou o juiz continuar com a medição. Parece-nos ter o juiz assim procedendo, infringindo a Lei e seu Regulamento, considerando como devoluto hum terreno ocupado por capoeiras, – prova evidente de ter ele sido lavrado e por conseguinte possuido por alguém, e de não dever por isso fazer parte de terreno devoluto concedido.
As terras de capoeiras que Felippe Pantoja possuía estavam passíveis de regularização pelo tempo de cultivo de 10 anos antes da demarcação. No mapa de medição anexado ao processo e desenhado por Pedro Ripoll, as terras usurpadas chegam a 200 braças, ou aproximadamente, 1.740 metros quadrados.
Os processos de medição e demarcação de terras procedidos fora da capital do Pará – Belém -, no caso aqui o município de Igarapé-Miri, eram remetidos à capital para análise da presidência da província para apurar possíveis irregularidades. Caso a apuração de irregularidades fosse positiva, a presidência da província mandava o processo de medição ser corrigido e refeito, ou em casos extremos, a parte prejudicada entrava com uma ação sumária que eram os processos de embargo. Diante dessa situação não é difícil de acreditar que dentro de uma rede de ralações pessoais, indo desde o interior até a capital, muitos interesses estavam em jogo. Como consequência, vemos o poder do discurso legitimador presentes nos autos, trazendo benefícios aos interessados em legitimar suas posses – mesmo de forma irregular – ou prejuízos a quem não tinha forças para a disputa do campo jurídico. Francivaldo Alves Nunes resume perfeitamente bem a riqueza dos autos de medição e demarcação de terras para a historiografia.
…os autos de medição têm o mérito de desvelar as justificativas de posseiros, sesmeiros e ocupantes quanto à necessidade de medir e demarcar suas terras; os possíveis conflitos envolvendo os requerentes e os confrontantes; as relações conflituosas com as autoridades locais; a importância do papel das testemunhas e a rede de relações pessoais e influência daqueles que pretendiam legitimar a terra; sem contar que esta documentação desvela os caminhos, em alguns casos, ilícitos, trilhados pelos posseiros para assegurar a concessão do titulo de terra.
Um estudo conduzido pelas principais instituições que atuam na questão fundiária revela a dimensão da grilagem de terras no Pará. Depois de três anos, cruzando informações de várias fontes, constatou-se que 6.102 títulos de terra registrados nos cartórios estaduais contém irregularidades. Somados, os papéis representam mais de 110 milhões de hectares, quase um Pará a mais, em áreas possivelmente griladas.
Jornal O Liberal, 30 de abril de 2009.
O Pará tem 1.253.164 quilômetros quadrados de extensão, enquanto o Mapa da Grilagem mostra que há documentos de posse de terra de quase 500 milhões hectares, entre grandes propriedades registradas em nome de pessoas físicas ou como fazendas, empresas madeireiras, agropecuária, entre outras. Os registros superestimam a extensão das terras, que vão de 145 mil hectares até grandes latifúndios registrados com até 20 milhões de hectares.
Jornal O Liberal, 14 de junho de 2009.
No estado do Pará, todos os dias lemos em jornais e em sites na internet, – nos blogs – notícias como essas acima denunciando crimes envolvendo a propriedade fundiária. As irregularidades dos dias atuais são gritantes, no entanto tem uma dimensão de importância semelhante as que eram registradas na documentação judiciária do século XIX e que foi objeto de análise deste trabalho. Esta artigo mostrou que através da justiça muitos processos conflitantes envolvendo a propriedade rural, aconteceram no Pará com características e intenções muito próximas dos problemas atuais, como a grilagem, a expropriação da terra, a política de influência junto às câmaras judiciárias, ou ainda a leitura diferente e divergente das legislações. A justiça foi tornando-se o fio de esperança ou desilusão para muitos que pensavam em defender sua propriedade. Isso porque a Lei de Terras de 1850 surgiu como o “projeto de regulamentação fundiária” do país chamando à regularização todas as propriedades adquiridas por posse ou por concessão de sesmarias. As multiplicidades de situações existentes no país não foram resolvidas com a Lei 601 de 1850, chegando aos dias atuais em conflitos agrários com nova roupagem, mas pelo mesmo objeto de desejo, a terra.
O caminho para se chegar à obtenção da propriedade da terra no século XIX podia ser longo, indo pelas vias “legais”, ou seja, a justiça. Em poucas linhas tentamos mostrar a extensão desse percurso através do discurso jurídico e até mesmo do discurso leigo (das testemunhas dos processos, principalmente) das partes integrantes das ações judiciais envolvendo áreas rurais. Esse discurso da legitimidade foi o ponto principal de análise para se ter o conhecimento da mentalidade, dos costumes e dos diferentes conceitos de propriedade que vão surgindo ao longo da segunda metade do século XIX, a partir da Lei de Terras de 1850 e seu regulamento número 1318 de 1854.
A ocupação das terras paraenses e brasileiras através da posse foi reinante até mesmo após a determinação do artigo primeiro da Lei nº 601 de 1850. A posse torna-se um costume no Brasil, de forma que irá assegurar a legitimidade da propriedade se estivesse de acordo com as determinações da “mansa e pacifica” condição em que foi adquirida. Seguindo a primorosa análise Thompsoniana, isto é, o costume da posse como forma de aquisição de propriedade, mesmo indo de encontro com a legislação, tem a força de virar discussão das situações existentes no país, no sentido de sensibilização por parte dos legisladores, das múltiplas formas de ocupação da terra. Um exemplo disso consta no caso do posseiro Bazilio Gomes do Amaral que ocupa “suas terras” há 16 anos e às vende a um terceiro com escritura particular, tudo isso respaldado pela legislação. Vale ressaltar que as diversas formas de ocupação da terra, dar-se também pela herança do sistema sesmarial vindo de Portugal e que foi insuficiente às necessidades estruturais de distribuição de terras no Brasil. De certa forma, a averiguação de cada caso que evolvia a disputa pela terra, passaria pela competência da justiça que tinha o poder de decisão e interpretação dos litígios de terra.
A procura da justiça para a legitimação da propriedade nos leva a pensar por qual motivo se dava a consciência ou inconsciência das pessoas a disputar os litígios de terras no campo judicial. Através da análise dos fatos expostos nesse texto, foi possível visualizar os diferentes motivos envolvendo os interesses dos litigantes à procura da justiça para legitimar a propriedade. Por isso, o conceito de propriedade, ou os conceitos de propriedades são flexíveis, tendo em vista o contexto da recém criada Lei de Terras de 1850 paripassu aos costumes e “direitos” sobre a terra, enraizados na Província do Pará e demais províncias do Brasil. Isso nos remete a ressaltar que o processo de padronização das normas de regularização da propriedade foi lento, deixando a hipótese de que não se deve fechar um conceito de propriedade no Pará em meados do século XIX, porque não encontramos uma uniformidade nas decisões judiciais e tão pouco nas concepções de domínio da propriedade pelas partes integrantes das ações judiciais.
Não muito distante dos dias atuais, no sentido dos motivos para a ocorrência de conflitos de terra, os dez anos do século XIX pesquisados neste trabalho aproximam-se muito das noticias citadas acima. A invasão de terras por terceiros, o interesse em ampliar o terreno por grandes fazendeiros e posseiros e a falta de fiscalização das terras paraenses são motivos distantes em tempo, mas atuais em conteúdo na descrição das fontes pesquisadas. Entre outros, temos os litígios entre integrantes de mesma família por uma parcela de terra, problemas entre proprietários e agregados, onde os contratos verbais são comuns e condição para usufruto da terra e, os mais comuns, que são pequenos agricultores tentando fazer seus roçados “alegando que essas terras não têm dono e eram terras de matas”. Através da dinâmica do conceito de propriedade e o discurso da legitimidade presente nas ações judiciais, foi possível satisfazer a proposta dessa temática em conhecer um pouco dos conflitos agrários no Pará do século XIX.
1 Centro de Memória da Amazônia (CMA). Cartório Sarmento – 1863. Autos de Demarcação de Terras. Declaração do posseiro Bazilio Gomes do Amaral em 1854.
2 Essas informações estão no traslado de escritura de compra anexada ao mesmo processo de Demarcação de Terras citado na nota anterior.
3 Vale ressaltar que essa declaração pode ter sido um pedido do advogado de Antonio Ferrão, Higino Lopes, para reforçar sua intenção de demarcar as terras, diminuindo as possibilidades de contestação dos vizinhos.
4 Motta, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro – Vicio de Leitura: Arquivo Público do estado do Rio de Janeiro, 1998. Pg. 72.
5 Arquivo Público do Estado do Pará (APEP). Juízo Municipal (JM). Autos de demarcação de terras – 1861. Fala de Manoel Eugênio da Conceição na petição inicial do processo de medição de terras em Igarapé-Miri.
6 Segundo Elione Guimarães, “Capoeiras é a denominação empregada para as terras que já haviam sido utilizadas para a produção de uma lavoura – de gêneros ou do produto de exportação – e que se encontravam em pousio.” Em Motta, Márcia Maria Menendes. (Org.) Dicionário da terra. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2005.
7 APEP. JM. Autos de Demarcação de terras – 1866. Fala do Procurador Fiscal da província do Pará quando os autos foram remetidos à capital Belém. O Procurador Fiscal interino está apontando as irregularidades da medição ocorrida em Igarapé-Miri.
8 Nunes, Francivaldo Alves. Fontes para estudo da História Agrária no Brasil oitocentista: o caso dos Autos de Medição de Terra. Texto apresentado no I Encontro Paraense de Estudantes de História, entre os dias 12 e 14 de novembro de 2008 na UFPa, campus do Guamá.
9 Thompson, Edward Palmer. “Introdução: costume e cultura”. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Para este autor, a consciência e os usos costumeiros poderiam desembocar em reivindicações de novos “direitos”.
Bruno da Ponte Souza
Bacharel/Licenciado em História pela UFPA
bmariano222@hotmail.com