O sonho de democracia social continuará distante enquanto a população não tiver a capacidade de discernir para além do que a mídia main stream mostra
Ju Abe
Antes de começar a tentar estabelecer algum quadro minimamente plausível dentro do cenário da guerra (faço minhas as palavras de Ésquilo: “Na guerra, a primeira vítima é a verdade), preciso dizer: não há como apoiar uma invasão armada a um território civil. Qualquer pessoa com um coração minimamente quente pulsante dentro do peito, indignar-se-ia com o que está sendo mostrado diariamente nos maiores veículos de imprensa. Independentemente do jogo do poder, quem mais sofre sempre é o povo, e não podemos deixar de recriminar o que está sendo feito à população ucraniana.
Mas há que se concordar num ponto: a visão da guerra na Ucrânia que está sendo mostrada pela grande mídia é grotescamente superficial e repetitiva. Está mais para uma série da Netflix bastante dramática e sangrenta do que uma documentação dos fatos, propriamente ditos. A grande imprensa age como um papagaio repetindo o que todo mundo já está careca de saber.
E isso reflete a trapalhada diplomática que está diante dos olhos do mundo. Impotentes, os líderes mundiais precisam alimentar um posicionamento viável diante da catástrofe, enquanto escondem a parte mais importante dos fatos: sua parcela de culpa. Afinal, são os xerifes do planeta, não podem “queimar” suas reputações diante de seus eleitorados.
Não culpemos demais os grandes veículos, assim como os porta vozes das nações que se autointitulam os democráticos e civilizados juízes planetários, pois eles apenas estão fazendo aquilo que lhes cabe fazer no momento: alimentar uma narrativa que cause uma pressão em Vladimir Putin, para que a Rússia faça aquilo que todos nós atualmente ansiamos: ordene o cessar fogo. O problema é que, em meio a esse, digamos, “bombardeio verbológico”, alguns se perdem, e começam a achar que isto corresponde realmente à verdade, quando não passa de mero jogo diplomático.
Nós, que não temos compromisso com a opinião das grandes massas, podemos dizer: existe muita omissão de fatos, cujo resultado é uma atitude em crescimento na atual etapa do neoliberalismo: um desprezar da História e uma incapacidade de análise que perpetua comportamentos que vou chamar aqui de “comportamento de manada”, onde populações inteiras são facilmente manipuladas e beneficiam jogos políticos nocivos e destruidores dos projetos de emancipação social e popular.
O presidente da Ucrânia não é o herói que foi aplaudido de pé pelo Parlamento Europeu, a OTAN é uma organização que existe para gerar e alimentar cultura e indústria de guerra, a hegemonia de EUA-União Europeia precisa ser questionada, a ONU está se mostrando cada vez mais um órgão fraco e impotente diante das catástrofes planetárias.
Tais catástrofes chocam e revoltam quem esforça-se para manter o mínimo de informação sobre a atualidade, em tempos de guerra e de “paz” (coloco essa palavra entre aspas, porque na prática isso já não existe a muito tempo).
Tais fatos são sistematicamente escondidos das grandes massas há décadas. Alguns membros dessa “Indústria de ideias de massa” (incluindo jornalistas, colunistas, artistas, políticos, influencers, etc) sabem disso, outros, perdem-se em meio destes discursos e orgulham-se enquanto promovem a desinformação.
Dentre estes formadores da opinião pública, os que têm consciência permanecem apenas fazendo seus trabalhos (pois precisam pagar suas contas), enquanto os outros continuam acreditando que são os verdadeiros “guardiões da verdade” quando na verdade o que fazem é promover o pensamento de rebanho e a falta de capacidade de análise que perpetuam as desigualdades sociais, ou: a eterna guerra da desigualdade e da injustiça social.
Não quero que este seja apenas um artigo de acusação. Oposto ao desenvolvimento dessa “mentalidade de rebanho” é a universalização da educação. Só existe um meio das camadas populares aprenderem sobre História, Geopolítica, Economia: nas escolas e nas universidades, não pela televisão ou redes sociais. Claro, os donos do poder sabem disso e por isso- exatamente por isso- não consideram aumentar os investimentos em educação- a educação meche com as estruturas da sociedade.
Voltando à Guerra na Ucrânia: um país que vive no seu seio conflitos insolúveis (refiro-me à Ucrânia, que, em 2014, depôs via Golpe de Estado um presidente eleito pró-Rússia e segue em conflito interno contra as regiões separatistas pró-Rússia em Donbass), querer de repente entrar para a OTAN, fere a lógica racional.
Para o leitor que não sabe, o estatuto da OTAN reza que todos os países membros devem utilizar de todos os meios necessários- inclusive a guerra, para garantir a integridade de seus aliados. Isso significa que, se hoje a OTAN tivesse a Ucrânia entre seus membros, ela arrastaria para um conflito local as maiores potências econômicas do mundo. Ou seja, a entrada da Ucrânia na OTAN transformaria uma guerra local em mundial.
Volodymyr Zelensky queria que o mundo o defendesse contra a “Rússia Malvada”, mas não contava com a reação Russa antes que a aliança fosse consolidada. Hoje, os diplomatas na OTAN sabem que não há condições de se meterem no conflito, afinal, ninguém quer uma guerra mundial. Mas, porque foi preciso a Rússia mais uma vez mostrar o seu poderio, até que eles chegassem à tal conclusão- por que não barraram a Ucrânia antes?
Se as negociações diplomáticas não foram suficientes para parar Putin, também deveriam ser revistas as regras da OTAN, mas não parece haver boa vontade nesse sentido. Repito: um país que vive conflitos internos insolúveis, querer de repente entrar pra uma aliança beligerante como a OTAN, fere a lógica racional. Mas, parece que em tempos de guerra, os vilões têm que estar bem definidos num lado só, e o ocidente já escolheu o inimigo- Vladimir Putin. Ninguém parece disposto a assumir o seu lado na culpa, e o diálogo diplomático permanece tão superficial quanto as ideias que atualmente manipulam as massas.
Ju Abe é cantora e compositora, formada em Filosofia e estudante de Letras/Inglês pela Universidade Federal do Pará.