Por Geisy Dias (*)
O deslizar preciso da esponja embebida em tinta branca comprova a experiência de quem há 15 anos se dedica ao oficio de pintora. Ivanilde Santos, 33 anos, é a quinta dos oito filhos de Lina Santos e desde os três anos começou a ‘brincar’ do que, como por herança de família, se transformaria em sua profissão. “Daqui todos da família tiram seu sustento. Funciona como uma matriz (minha mãe) e várias filiais”, diz referindo-se ao fato de além dela outros três irmãos terem como referência a Olaria de Dona Lina para a fabricação das peças que serão vendidas em cerâmicas próprias.
A cerâmica de Ivanilde fica em frente a própria residência, na travessa Soledade, também no Paracuri I e vem sendo administrada pelo marido, Nielson, 34 anos, que no mês passado sofreu um grave acidente de moto e agora se recupera em casa. Ivanilde impressiona pelo equilíbrio. Quando questionada sobre como recebeu a notícia do acidente com o pai de seus dois filhos, ela responde. “Sempre fui bastante controlada. Acho que por causa da minha fé. Não me desespero à toa”.
Na escola foi até a conclusão do ensino fundamental. Nunca fez curso algum para desenvolver o trabalho de artesã, mas é com esmero que Ivanilde dedica ao menos oito horas de seu dia a confecção das peças que depois estarão à venda na cerâmica de sua casa. O lamento por não conseguir explicar a historicidade do artesanato que produz, ela compensa na passagem do oficio para os filhos Natanael e Nataly, de 9 e 10 anos respectivamente. Nas horas vagas do colégio as crianças se divertem moldando novos artefatos. E com um leve sorriso Ivanilde chama a atenção. “Ouviu essa barulheira no quintal? Foi assim que comecei”, diz. Sem compromisso de venda, os dois filhos de Ivanilde, assim como os outros nove netos de dona Lina, ajudam na produção.
“Meu avô ensinou a meu pai, que depois do casamento passou à minha mãe. Com a separação minha mãe assumiu nossos cuidados e para nos dar o que comer fundou sua própria fábrica”, relembra. Além da cerâmica de Ivanilde e de Dona Lina, a família mantém outras cinco olarias. A produtividade da família equipara-se com a de outros artesãos do bairro como Aluisio, Lucinha e Doca, que além de venderem no próprio Paracuri I comercializam para fora do estado e do país.
O processo de coleta da argila, a matéria-prima, começa cedo, por volta das 5h e 6h, dependendo da maré. É quando os barreirenses pegam um barquinho e descem o Rio Paracuri. Entre eles, Lucivaldo, 39 anos, que há 25 anos é boleiro e fornecedor de argila para os artesãos do Paracuri I. “Ainda moleque vim de Vila do Conde (Barcarena) para Icoaraci, para ser criado por minha avó, longe de meus outros irmãos. Aqui fiz minha vida”, diz ele. Sob o giro da maromba e um barulho ensurdecedor, Lucivaldo fala com carinho dos três filhos, Rosivaldo, 18 anos; Josivaldo, 17 anos; e Fabíola, 13 anos, que não quis que se dedicassem ao trabalho pesado. “Respeito meu trabalho. Daqui tirei tudo que tenho. Mas a renda varia, depende da maré. Para eles quero uma coisa mais certa”.
O líder da Associação dos Barreirenses do Bairro do Paracuri, John Roosevelt também comenta sobre os desafios de organização do trabalho. “Temos dificuldades de organização. A valorização de nosso trabalho é precária. Os artesãos pagam pouquíssimo por cada tablete de argila, entre R$ 1,00 e R$ 1,50. Temos que ir cada vez não longe para pegá-la. Agora estamos ‘pras’ bandas do Tenoné”.
Na busca por melhorias nas condições de trabalho os barreirenses já esbarraram em promessas não cumpridas de políticos e no desinteresse do poder publico. “José Croelhas (ex- agente distrital de Icoaraci) nos incentivou no que pode, mas teve que sair do cargo. Agora a Fumbel nos chamou. Vamos lá. O que queremos é a regularização de nosso estatuto”, completa Roosevelt. Ele acredita que através da organização os barreirenses deixaram de vez para trás as precariedades do trabalho arriscado na extração e trato da argila. Hoje a Associação conta com 21 olarias filiadas.
“Com sete anos comecei guiando o boi na maromba. Com 25 anos, junto com outros companheiros, empurrávamos o cilindro no braço. Era como se a gente fosse o boi”. Ri, lembrando de sua mocidade e como iniciou o trabalho pesado nas olarias de Icoaraci.
O tempo passou e hoje tudo é elétrico. Contudo os riscos são os mesmos. E por mais que Roosevelt pareça supersticioso para alguns, ele diz que cautela é fundamental. “Ninguém trabalha comigo em dia santo ou ‘bebido’. Se teimar que aguente as consequências”, diz. Comenta casos como o do sobrinho Osmair que insistiu em ‘bolear’ numa sexta-feira santa e no meio do processo a correia se partiu e o atingiu nas costas. “Por centímetros não foi fatal, mas com certeza doeu muito”, completa.
Trabalhando desde criança com argila Roosevelt aprendeu com Crispiano, uma espécie de mestres de todos, já que é o mais antigo dos barreirenses vivos no Paracuri. Figura folclórica, cheia de ensinamentos populares que misturam religiosidade com curandeirismo, ‘seu’ Crispiano recebe a todos que o procuram com uma reza forte para a limpeza do corpo e da alma. E no auge de seus mais de 90 anos de idade ele costuma envolver a todos com histórias, ainda que meio controvertidas, de quem dedicou toda uma vida a extração de argila no Rio Paracuri.
Ele chora ao ter de admitir a redução das forças para desenvolver seu trabalho e diz se sentir usado por muitos sem o devido retorno. A casa é um aglomerado de objetos, catados pelas ruas para serem revendidos como sucata. Reflete o abandono que as pessoas de idade avançada sofrem pela falta de preparo de determinadas famílias que passam a encará-los como mais um entulho em meio ao monturo de objetos. Foi ele que bêbado deixou um dos dedos do pé no Rio Paracuri, decepado pela cortadeira. Hoje ele não bebe mais.
Dilce Souza, 39 anos, proprietária de uma das lojas da Feira do Paracuri – revitalizadas em 2003 e mantidas em bom estado de conservação pela Sociedade dos Amigos de Icoaraci (Soami) na Orla de Icoaraci, lembra do tempo em que as barracas eram de lona, o que sempre causava transtornos nas tradicionais chuvas da tarde.
“Que bom que melhorou. Antes isso baixava até os preços das mercadorias, que quase sempre estragavam. Tem tempo que o governo deixou de ajudar. Mas o outro prefeito, antes desse, muito fez. Nós até tivemos cursos de empreendedorismo. Sinto falta disso. Mas sou feliz pela organização que conseguimos manter’, analisa.
Trabalhando há oito anos como artesã, Dilce considera ruim não terem apoio e incentivo para entender e passar adiante a história do artesanato do Paracuri, já que sabe que ornamentam espaços pelo mundo afora. “Queria um dia poder explicar: ‘Esse é um vaso com traços tapajônicos, aquele tem desenhos marajoaras e aqui eles são feitos por isso ou aquilo’, sabe como é?”. Mas tem orgulho do faz, seja quando pinta os artefatos na Olaria de sua sogra na passagem Espírito Santo, no Paracuri I ou quando as expõem nas prateleiras da loja 24 da Feira do Paracuri na Orla de Icoaraci.
Geisy Dias é estudante de jornalismo
para Caros Amigos
2 respostas para “Artesanato em cerâmica no Paracuri”
eu ACHO essa HISTORIA interessante
Gostaria que vocês conhecessem um tipo de artesanato em argila que remonta a Idade Média: