Já eu queria defender o direito de trabalhar vivendo. Tem mais alguém aí assim?
Sim, também poderia dizer pelo direito de viver trabalhando, para melhor responder ao mote irracionalista de quem quer morrer trabalhando, mas é preciso ir ao centro das coisas: o que importa (ou deveria importar) é viver, e não condicionar a existência (ou sua finitude) ao direito de trabalhar.
Viver é o que importa, portanto. Tem mais alguém aí que pensa assim?
E isto dito, agora sim, podemos observar que trabalhar completa a vida. Pelas seguintes razões:
1) é necessário: precisamos nos sustentar e sustentar nossas famílias, precisamos trabalhar.
2) é ético: precisamos fazer nossa parte e participar da construção do mundo.
3) é importante: precisamos fazer, construir, ensinar, formar, indagar.
4) é prazeroso: precisamos, na medida do possível, alcançar o prazer do trabalho bem feito, porque isso nos fornece dignidade.
E quanto à morte – esse obscuro fascínio-fascista de alguns (mas não meu) – associá-la ao direito de trabalhar é, creio, minimamente, um sofismo. Ou seja, uma lógica falsa.
Para os materialistas (tipo Epicuro), a morte é uma dissolução definitiva do ser. Mas um fascista não acreditaria nisso. Um fascista acredita na dissolução, mas não no ser.
Para os idealistas (tipo Platão), a morte é uma passagem para o reencontro com a alma. Mas um fascista não acreditaria nisso. Um fascista acredita na alma, mas não no reencontro.
Para um universalista (tipo Espinoza) a morte ativa a sabedoria (porque a meditação sobre a morte nos ensina a meditar sobre a vida). Mas um fascista não acreditaria nisso. Um fascista acredita na morte, mas não na sabedoria.
Para um existencialista (tipo Kirkegaard) a morte permite uma angústia fértil, que permite superar o medo de viver. Mas um fascista não acreditaria nisso. Um fascista acredita no medo de viver, mas não na fertilidade.
Já para um fascista (tipo… bem…certamente não há filósofos a citar, nem aqui nem na Virgínia) a morte saliva, saliva sibilando. Só isso. Mas nem assim um fascista acredita na morte. Um fascista saliva e sibila, só isso (o que dizer além?).
É difícil entender a cabeça de um fascista porque ele não é materialista, nem idealista, nem universalista, nem existencialista. O fascista não é. Não é nem o que pretender ser. Somente não é. Longamente, em silêncio, sozinho, no escuro, na sua morte eterna, não é.
A aparência de que seja alguma coisa decorre desse desejo de aparecer, de ter uma efêmera visibilidade, afirmando a morte e outras bravatas. Pura retórica, puro sofismo, puro desejo empatado de existir. Alguém concorda? Tem mais alguém aí que pensa assim?
Tem mais alguém aí assim?
Se estou escrevendo aqui é porque me permito o direito de cultivar minha indignação – diante da imbecilidade – e de trabalhar vivendo. Porque me permito o direito de exigir vacina, CPI, empatia e, ainda, ao mesmo tempo que tudo isso, de trabalhar vivendo.
Como muitos de meus colegas, professores, transcendo, todos os dias, um dia depois do outro, com dor, com cuidado, com máxima atenção e máximo respeito, às mortes de meus amigos, de meus familiares e de meus contemporâneos (das gerações que estão no mundo junto comigo). E também porque transcendo os desafios de reinventar a maneira como somos professores nestas contingências infelizes, inclusive tendo que escutar estultices.
Fábio Fonseca de Castro – Professor da UFPA, atuando no PPGDSTU-NAEA, PPGCOM e Facom. Doutor em Sociologia.
Texto publicado originalmente em seu perfil no Facebook.