Moriti Neto (*)
Para quem vê o programa CQC, da TV Bandeirantes, como mistura de jornalismo e humorístico, de cara, largo duas perguntas: depois da tremenda barulheira causada pela pseudo-entrevista do deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) no dia 28 de março, pode-se dizer que aquilo é jornalismo? E sobre o tal humor? Eu, sinceramente, não consegui rir até agora.
Todos que são razoavelmente informados politicamente sabem das posições ultra-reacionárias do parlamentar em questão. Jair Bolsonaro foi capitão do exército e confessa ter saudade da ditadura militar. É preconceituoso ao extremo. Por exemplo, manifesta-se, sempre virulento, contra a união civil entre casais homossexuais, o debate sobre homossexualidade na escola e dá sinais óbvios de racismo – não foi só contra Preta Gil que o sujeito destilou o veneno discriminatório de raça, pois muitas vezes já se declarou contra o sistema de cotas, dizendo que jamais permitiria que um médico negro, formado como cotista, colocasse as mãos nele. Sendo assim, o que a brilhante equipe do CQC esperava?
No início do programa, o ex-professor Tibúrcio, Marcelo Tas, já anunciava que viria uma entrevista com “o deputado mais polêmico do Brasil”. No fim da “obra-prima”, dando o tradicional migué, Tas diria, com cara de “susto”: “Prefiro acreditar que o Bolsonaro não entendeu a pergunta”, referindo-se a resposta dada a Preta Gil. Contudo, no dia seguinte, em entrevista ao Terra Magazine, o líder do CQC observou o seguinte: “Entendi que Bolsonaro fez duas coisas que faz com recorrência: declarou seu profundo apoio à ditadura militar e manifestou dois preconceitos, contra os negros e contra os gays”. Então, cadê a surpresa, meu caro? Onde está o jornalismo? Ou mesmo o humor, a tal ironia que joga luzes a temas relevantes, porém com leveza?
De leveza não houve nada. A situação foi pesada. Clima ruim. Foram traídos todos os princípios do bom jornalismo e, se havia intenção de fazer piada, pouca gente riu – talvez só os que lucraram com o ibope gerado em torno da polêmica que, de fato, foi urdida minuciosamente. Senão, porque escolher Preta Gil para fazer a pergunta final? Se o objetivo era provocar debate, “jogar luz” nas discussões, por que não levar ativistas homossexuais e negros para responder com fundamento as imbecilidades proferidas pelo “entrevistado”?
Simples. O intuito era “jogar luz” numa coisa apenas: audiência. Ainda que ela fosse trazida das palavras de um cretino que praticou crimes – morais e éticos – de racismo e preconceito, em rede de projeção nacional. E o CQC deu palco a isso. Foi palanque de um discurso torpe, disseminador do preconceito racial e da homofobia, pois não esqueçamos que mais de 120 mil brasileiros elegeram Bolsonaro ao atual mandato e que figuras assemelhadas transitam pelo Congresso Nacional e outras casas legislativas Brasil afora.
E, se o deputado praticou ato criminoso, o CQC e a Bandeirantes também o fizeram? Tas já andou dizendo que as críticas feitas ao programa por movimentos e ativistas são tão preconceituosas quanto às palavras do parlamentar. Tergiversação, senhor ex-professor Tibúrcio. Não desvie o foco. Os protestos não têm base no preconceito, mas nos crimes que o programa e a emissora ajudaram a cometer.
Com a precipitada trama, o CQC não traiu só os princípios do bom jornalismo. Traiu a Constituição Federal no que tange ao Capitulo V, sobre Comunicação Social. Estimulou sentimentos de dissensão na sociedade brasileira ao abordar tais temas a partir dos grunhidos de uma pessoa desqualificada, fornecendo-lhe uma concessão pública como espaço para propagá-los. Não houve debate algum. Somente gritaria rasteira.
Moriti Neto é jornalista e colunista do Nota de Rodapé.