A terra indígena Ituna Itatá, no Pará, liderou o ranking das mais desmatadas nos últimos anos – Fábio Nascimento/Greenpeace
Brasil de Fato- No dia em que voltou de férias, em 15 de julho, Geovanio Oitaiã Pantoja recebeu uma boa notícia: foi efetivado no cargo de coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai, a Fundação Nacional do Índio. Esse foi o último posto ocupado no órgão pelo indigenista Bruno Pereira, assassinado no Vale do Javari no início de junho.
Pantoja – mais conhecido como Geovanio Katukina, em referência ao povo ao qual pertence – ocupava a coordenação de isolados interinamente desde janeiro. Ele foi acusado por servidores da Funai de omissão diante do desaparecimento da dupla Bruno e Dom Phillips. Suas férias, gozadas em meio à crise, soaram como um escape diante das cobranças.
Agora, documentos obtidos com exclusividade pela Repórter Brasil demonstram que Katukina trabalhou contra o objetivo do setor que comanda, a proteção de indígenas isolados. Em novembro do ano passado, ele emitiu um parecer contestando indícios coletados por servidores do órgão sobre a existência do “povo nº 110 – Igarapé Ipiaçava” na terra indígena Ituna Itatá, no sul do Pará.
O parecer subsidiou um despacho da Direção de Proteção Territorial que concluiu, em 23 de novembro, que não foi possível confirmar a presença de indígenas isolados na área.
Localizada nas margens do rio Xingu, a Ituna Itatá vem sendo ocupada por grileiros e bois – que, apesar da ilegalidade, entram na cadeia produtiva de grandes frigoríficos. Mais de 21 mil hectares, o equivalente à área de João Pessoa (PB), já foram desmatados entre 2008 e 2020, colocando a terra indígena entre as mais desmatadas nos últimos anos. Em entrevista publicada pela Folha de S. Paulo após a confirmação de sua morte, Bruno Pereira alertou que Ituna Itatá e outras duas terras indígenas de isolados “são de interesses fundiários e minerários monstruosos. São terras relativamente grandes e que valem milhões e milhões de reais”.
Melhores evidências em dez anos de pesquisas
Apesar de contestadas por Katukina, as evidências de indígenas isolados foram obtidas por indigenistas experientes e consideradas as mais consistentes em dez anos de pesquisas na região. “Se fosse em qualquer gestão, seria uma celebração, mas não foi o que aconteceu”, contou um servidor que participou da expedição, realizada em setembro de 2021.
Entre os achados estão um utensílio de cerâmica utilizado para beber água, reconhecido por indígenas Asurini como possível obra de grupos isolados. Há indicativos de que seu uso é recente. Um casco de jabuti, alimento comum dos indígenas, também foi encontrado pelos expedicionários, que estimaram que a carne havia sido consumida há aproximadamente três meses – o que reforçou a impressão de que há habitantes no local.

Também foi localizada uma roça antiga aberta na mata e cacos de cerâmica demonstram uma ocupação que pode ter se iniciado há 50 anos. “Os grupos isolados têm o hábito de retornar a determinados pontos mesmo depois de passar tempos fora. Justamente porque nessa área da roça tem plantas e água, é um lugar bom para voltar. Articulando todos esses vestígios a indicação é que pode ser um povo isolado”, avalia Camila Jácome, arqueóloga da Universidade Federal do Oeste do Pará.
Depois de publicadas as evidências em um relatório interno da Funai, um dos servidores que assina o documento, Guilherme Martins, foi transferido para o setor de recursos humanos. Segundo entrevista que deu à Agência Pública, foi uma retaliação ao trabalho feito em Ituna Itatá.
‘Primeira reação foi tentar desmentir’
Ainda em campo, a equipe de indigenistas, entre eles Jair Candor, reconhecido sertanista que atua há 34 anos com povos isolados, ligou para informar Katukina sobre os achados. “A primeira reação dele foi tentar desmentir os vestígios”, relatou uma fonte sob condição de anonimato.
A postura de negar as evidências tornou-se oficial na redação do parecer publicado em 11 de novembro, que é assinado também por Katukina. O documento menciona supostas imagens de satélite para cravar que “não foram detectadas aberturas de ‘capoeira’ que caracterizassem ocupação de índios isolados na região analisada”. A afirmação ignorava, assim, os vestígios de uma roça apontados pelos indigenistas que visitaram o local.
Para o especialista em sensoriamento remoto Juan Doblas, que trabalha no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e é doutorando do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a conclusão do parecer é equivocada já que o satélite utilizado pela dupla para contestar as observações feitas no chão da floresta não tem resolução suficiente que permita ver esse tipo de detalhe. Capoeiras e roças indígenas de grupos isolados geralmente são aberturas pequenas na mata, menores do que o LandSat 5, equipamento utilizado na análise, é capaz de detectar.
“Não há evidência técnica para refutar a presença de isolados nesse território. As imagens do LandSat 5 são insuficientes para registrar as alterações que esse grupo pode ter produzido na floresta”, afirma Doblas.
Boicote aconteceu após reunião com Zequinha Marinho
O parecer de Geovanio Katukina dialoga com a agenda do senador Zequinha Marinho (PL-PA), autor de um projeto de decreto legislativo que pretende acabar com a terra indígena. “Não há tribos isoladas na região. A bem da verdade, sequer há um povo indígena ali habitando”, justifica Marinho, com base em seu “conhecimento de causa”. O que existe, na opinião do parlamentar, são “terras produtivas” e famílias assentadas, disse ele.
No final do ano passado, o senador encontrou-se com o presidente da Funai, Marcelo Xavier, em uma reunião que não constou na agenda do dirigente do órgão indigenista. Segundo descobriu o repórter Rubens Valente, eles discutiram o “cunho ideológico e imprestabilidade” do relatório da expedição que encontrou vestígios de isolados em Ituna Itatá.
A conversa ocorreu no dia 9 de novembro. No dia 11 de novembro, Katukina apresentou a análise técnica na qual refutava as provas obtidas em campo. O despacho da Direção de Proteção Territorial com a conclusão que não era possível confirmar a presença de indígenas isolados na área saiu no dia 23 de novembro.
O interesse por trás da negação de povos isolados
A terra indígena Ituna Itatá está protegida por uma Portaria de Restrição de Uso. Este tipo de medida estabelece uma modalidade específica de área protegida, a terra indígena interditada, que tem um dupla objetivo: garantir a proteção para a localização de registros de povos isolados e estabelecer a área tradicionalmente ocupada por eles quando o registro for confirmado.
As portarias são temporárias, e devem ser renovadas até que se esgotem as pesquisas sobre a presença de povos na localidade.
No caso de Ituna Itatá, ela foi reconhecida pela primeira vez em 2011, e as portarias vinham sendo renovadas a cada três anos – o que não aconteceu em 2022, quando a Justiça precisou intervir para garantir a renovação. Em janeiro, a Funai renovou a portaria apenas por seis meses, após decisão judicial, mas em junho houve renovação nos moldes anteriores, válida até 2025.
Zequinha Marinho pediu diversas vezes a anulação da portaria . Na reunião com Marcelo Xavier, ele teve acesso à geolocalização dos vestígios, o que pode ter colocado em risco a integridade dos indígenas. “É provável que diversos grileiros tenham tido acesso sobre a localização dos vestígios”, comenta o antropólogo Fábio Nogueira, coordenador executivo do Observatório dos Povos Indígenas Isolados.